Fernando Henrique Cardoso nem tinha tomado posse. Montava o seu gabinete quando sua mulher, Ruth, disparou contra o parceiro político do PSDB naquele governo que se iniciava. O PFL, disse ela, era Antônio Carlos Magalhães, mas era também Gustavo Krause e Reinhold Stephanes. Ali, Ruth Cardoso limitava o terreno até onde aceitava que fossem as concessões às suas convicções e à sua ideologia. Nada de ACM, fiquemos com Krause e Stephanes. Iniciado o governo, um pouco depois, manifestações desse tipo de Ruth provocaram uma outra sintomática reação do então ministro das Comunicações e espécie de Zé Dirceu daquele início de era Fernando Henrique, Sérgio Motta: ela tinha de parar com aquela “masturbação sociológica”. Realpolitik pura, como somente um petista do atual governo seria capaz de invocar.
Esse tardio comentário a respeito da morte de Ruth Cardoso pretende ir nessa linha. A antropóloga, a intelectual casada com o presidente Fernando Henrique Cardoso, que detestava ser chamada de primeira-dama, podia preservar, na sua pureza de academia, os princípios que nortearam a fundação do PSDB. Princípios que Fernando Henrique, pressionado pela necessidade de governar com a falta de consistência da geléia político-partidária brasileira, abandonava. Dona Ruth não esquecia o que escrevera. É um reducionismo tolo dizer que os governos Fernando Henrique e Lula são a mesma coisa. Ainda que não seja transformadora, a política social de Lula vem produzindo uma sensível melhora na vida da população de baixa renda. O aumento da classe média e da capacidade de compra dos brasileiros são fatos. Pode-se questionar se vão se sustentar se houver um repique maior da inflação, mas são fatos. A postura internacional de Lula é também bem diferente da de Fernando Henrique, e voltada para outros parceiros. Mas, por outro lado, é inegável que tanto Lula como Fernando Henrique optaram pelo mesmo caminho de alianças fisiológicas de ocasião com os partidos e políticos de aluguel que pululam no Congresso. Em troca de cargos e benesses é que construíram as suas maiorias.
E pagaram um preço por isso. Se não precisassem dessa turma, se não tivessem que deixar ministérios e postos de poder à disposição deles, poderiam ter fechado os ralos por onde escoam o dinheiro público, poderiam ter adotado gestões mais eficientes, poderiam, dentro das suas escolhas, ter feito muito mais.
Ao limitar o campo de PFL que ela aceitava, Ruth Cardoso tentava sinalizar como imaginava que as alianças poderiam ter se dado no governo de Fernando Henrique Cardoso. Ou seja, dentro do que é natural em qualquer democracia, aceitava que alianças fossem feitas. Desde que não descaracterizassem um programa e um perfil de governo. Podiam, assim, aproveitar o lado menos fisiológico, mais republicano e menos conservador do PFL. E tentar governar a partir de um ideário que encontrasse eco na sociedade e que, assim, não pudesse ser combatido. Pode ser que Dona Ruth só pensasse assim porque era uma intelectual, porque não tinha a real necessidade de pegar a mão na massa e tocar o país.
Acreditar nisso, convenhamos, é um bocado triste. Hoje, Lula e parte do PT parecem acreditar no mesmo. Deveriam, porém, ao refletir sobre a morte de Dona Ruth, observar o que aconteceu com o PSDB após deixar o poder. Descaracterizado das suas convicções e objetivos iniciais, o partido dos tucanos vaga por aí tentando fazer oposição. É um caldeirão de ódios com táticas personalistas diferentes e sem praticamente nenhum objetivo comum. Que hoje, talvez, nem saiba muito bem por que um dia separou-se do PMDB. Disputa o poder, e só. Livrou-se de vez da masturbação ideológica. E não ganhou nada com isso.
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