segunda-feira, 30 de junho de 2008

A tucana

Dona Ruth, a intelectual que detestava ser chamada de primeira-dama, podia preservar, na sua pureza de academia, os princípios que nortearam a criação do PSDB e que Fernando Henrique, pressionado pela necessidade de governar com a falta de consistência da geléia político-partidária brasileira, abandonava

Fernando Henrique Cardoso nem tinha tomado posse. Montava o seu gabinete quando sua mulher, Ruth, disparou contra o parceiro político do PSDB naquele governo que se iniciava. O PFL, disse ela, era Antônio Carlos Magalhães, mas era também Gustavo Krause e Reinhold Stephanes. Ali, Ruth Cardoso limitava o terreno até onde aceitava que fossem as concessões às suas convicções e à sua ideologia. Nada de ACM, fiquemos com Krause e Stephanes. Iniciado o governo, um pouco depois, manifestações desse tipo de Ruth provocaram uma outra sintomática reação do então ministro das Comunicações e espécie de Zé Dirceu daquele início de era Fernando Henrique, Sérgio Motta: ela tinha de parar com aquela “masturbação sociológica”. Realpolitik pura, como somente um petista do atual governo seria capaz de invocar.

Esse tardio comentário a respeito da morte de Ruth Cardoso pretende ir nessa linha. A antropóloga, a intelectual casada com o presidente Fernando Henrique Cardoso, que detestava ser chamada de primeira-dama, podia preservar, na sua pureza de academia, os princípios que nortearam a fundação do PSDB. Princípios que Fernando Henrique, pressionado pela necessidade de governar com a falta de consistência da geléia político-partidária brasileira, abandonava. Dona Ruth não esquecia o que escrevera. É um reducionismo tolo dizer que os governos Fernando Henrique e Lula são a mesma coisa. Ainda que não seja transformadora, a política social de Lula vem produzindo uma sensível melhora na vida da população de baixa renda. O aumento da classe média e da capacidade de compra dos brasileiros são fatos. Pode-se questionar se vão se sustentar se houver um repique maior da inflação, mas são fatos. A postura internacional de Lula é também bem diferente da de Fernando Henrique, e voltada para outros parceiros. Mas, por outro lado, é inegável que tanto Lula como Fernando Henrique optaram pelo mesmo caminho de alianças fisiológicas de ocasião com os partidos e políticos de aluguel que pululam no Congresso. Em troca de cargos e benesses é que construíram as suas maiorias.

E pagaram um preço por isso. Se não precisassem dessa turma, se não tivessem que deixar ministérios e postos de poder à disposição deles, poderiam ter fechado os ralos por onde escoam o dinheiro público, poderiam ter adotado gestões mais eficientes, poderiam, dentro das suas escolhas, ter feito muito mais.

Ao limitar o campo de PFL que ela aceitava, Ruth Cardoso tentava sinalizar como imaginava que as alianças poderiam ter se dado no governo de Fernando Henrique Cardoso. Ou seja, dentro do que é natural em qualquer democracia, aceitava que alianças fossem feitas. Desde que não descaracterizassem um programa e um perfil de governo. Podiam, assim, aproveitar o lado menos fisiológico, mais republicano e menos conservador do PFL. E tentar governar a partir de um ideário que encontrasse eco na sociedade e que, assim, não pudesse ser combatido. Pode ser que Dona Ruth só pensasse assim porque era uma intelectual, porque não tinha a real necessidade de pegar a mão na massa e tocar o país.

Acreditar nisso, convenhamos, é um bocado triste. Hoje, Lula e parte do PT parecem acreditar no mesmo. Deveriam, porém, ao refletir sobre a morte de Dona Ruth, observar o que aconteceu com o PSDB após deixar o poder. Descaracterizado das suas convicções e objetivos iniciais, o partido dos tucanos vaga por aí tentando fazer oposição. É um caldeirão de ódios com táticas personalistas diferentes e sem praticamente nenhum objetivo comum. Que hoje, talvez, nem saiba muito bem por que um dia separou-se do PMDB. Disputa o poder, e só. Livrou-se de vez da masturbação ideológica. E não ganhou nada com isso.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Correçaozinha

Corrigindo o finalzinho do artigo anterior: Dilma pode acabar tendo o mesmo destino do seu antecessor, e não "sucessor", como está lá.

Temporada de caça

Uma breve enumeração dos adversários internos de Dilma no PT e na base pode ajudar a entender por que, desde que se tornou a aposta eleitoral de Lula, ela não sai da berlinda

Desde que foi escolhida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva como aposta preferencial à sua sucessão em 2010, a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, não teve um dia sequer de sossego. A denúncia sobre o favorecimento ao grupo Mattlin Patterson na venda da Varig aconteceu na véspera do sepultamento da CPI dos Cartões Corporativos. Ou seja, mal Dilma acabou de se livrar de um abacaxi, começou a descascar outro, talvez ainda mais duro e azedo que o primeiro. Embora ela mesma viva falando de “fogo inimigo”, a própria Dilma sabe: as denúncias estão saindo do seu lado da bancada, de gente bem próxima dela. E Dilma sabe ainda que cada história dessas que a desgasta provoca urros de satisfação em alguns setores petistas.

A história da Varig esconde interesses comerciais. E eles podem estar na origem da denúncia de Denise Abreu. Não custa lembrar sempre que Denise era acusada de beneficiar a TAM na Anac. E a TAM tinha interesse na Varig. Embora a motivação possa estar aí, é verdade também que Dilma coleciona adversários de peso no PT e na base governista. E que eles adoram vê-la desgastada. A intenção aqui é enumerar essas trombadas de Dilma no PT e na base. E avaliar até que ponto tais trombadas podem estar na origem da artilharia que se abate sobre ela.

O primeiro e principal adversário é o antecessor de Dilma na Casa Civil. José Dirceu nunca engoliu a forma como Dilma chegou à Casa Civil. Ele esperava a possibilidade de uma saída negociada, na qual ainda continuasse tendo algumas pontes que o mantivessem em contato com as principais estruturas de poder do governo. Sua expectativa era manter na secretaria-executiva da Casa Civil Swedenberger Barbosa como principal ponte. Tinha nesse projeto o apoio do chefe de gabinete da Presidência, Gilberto Carvalho. Dilma atropelou os dois e trocou Swedenberger por Erenice Guerra, uma de suas assessoras de confiança antes no Ministério das Minas e Energia. Dirceu não perdoou a forma como se deu esse processo. Mais tarde, Gilberto Carvalho acabou levando Swedenberger para trabalhar com ele.

Dilma levou o primeiro choque quando descobriu que fora José Aparecido Nunes o vazador do dossiê com gastos do presidente Fernando Henrique Cardoso com cartões corporativos. Aparecido, o ex-secretário de controle interno, era o único remanescente do grupo de Dirceu na Casa Civil. A entrevista de Denise Abreu provocou o segundo choque. Antes de ser diretora da Anac, ela era nada menos que a assessora jurídica da Casa Civil na gestão José Dirceu. Pode ser mera coincidência, mas Dilma não deixou de considerá-la. Daí a insinuação que fez na entrevista sobre o PAC, ao dizer que estranhava a atitude de Denise Abreu, pelo fato de ela sempre ter sido bem tratada, justamente por ter pertencido ao quadro da Casa Civil na gestão anterior a ela.

Embora esteja hoje distante de Lula, Dirceu continua tendo pontos de influência importantes junto ao governo e ao PT. E, coincidentemente, hoje eles formam exatamente o grupo que mais resiste à candidatura de Dilma à Presidência da República. No governo, além de Gilberto Carvalho, Dirceu tem influência sobre o secretário-geral da Presidência, Luiz Dulci, e sobre o assessor especial Marco Aurélio Garcia. Todos muito próximos de Lula. No processo que levou à eleição do deputado Ricardo Berzoini como presidente do PT, Dirceu fez um acordo tácito com o ministro da Justiça, Tarso Genro. Ajudou a costurar o acerto com a tendência de Tarso, Mensagem ao Partido, que levou o deputado José Eduardo Cardozo a assumir a secretaria-geral do PT, atropelando o deputado Jilmar Tatto. Dirceu continua tendo pelo menos uma reunião com Berzoini e os principais políticos do antigo Campo Majoritário a cada quinze dias para, junto com eles, traçar estratégias para o PT.

O gaúcho Tarso, que em muitos momentos não costuma primar pela discrição, soltou o petardo mais direto contra Dilma. Em entrevista ao jornal Zero Hora há três semanas, Tarso disse publicamente o que muitos petistas têm dito nos bastidores. “Ela não tem militância no partido”, afirmou, questionando, por esse motivo, a viabilidade da sua candidatura. Para o ministro da Justiça, Dilma teria que, primeiro, construir uma base interna para a sua candidatura. E essa sua capacidade de criar um vínculo com o PT é, na opinião de Tarso, “um enigma”. Dilma não escondeu sua irritação com Tarso que, depois da entrevista, saiu de férias. A ministra da Casa Civil pediu formalmente a Lula que, na volta de Tarso, estabeleça um encontro entre os dois para que ela possa colocar a questão em pratos limpos.

Se Dirceu fez com Tarso seu acordo tácito, Tarso, por sua vez, fez o mesmo com o ministro de Assuntos Sociais, Patrus Ananias. Como ambos trabalham com a possibilidade de serem os candidatos petistas na hipótese de um fracasso de Dilma, uniram-se primeiro nos bastidores para desgastar o adversário comum. Paralelamente, trabalha o grupo ligado à candidata à prefeitura de São Paulo, Marta Suplicy. No caso, tanto o Campo Majoritário de Dirceu e Berzoini como o grupo de Marta tem base em São Paulo, que ficaria enfraquecida na hipótese da candidatura de Dilma, patrocinada diretamente por Lula. A turma de Marta espera que ela conquiste a prefeitura e que, a partir daí, volte a se credenciar na disputa interna pela sucessão de Lula.

Pesa ainda contra Dilma a torcida contra de outros partidos da base. A falta de traquejo político é uma das causas. “Nós todos sabemos que Dilma, pelas suas características e origens, não dará a menor pelota para as demandas políticas se virar presidente”, diz um deputado petista com trânsito no baixo clero. Outra causa importante é sua trombada com os caciques do PMDB pelos cargos principais do setor energético, a começar pela própria oposição que fazia à escolha do senador Edison Lobão para o Ministério das Minas e Energia, indicação do senador José Sarney (PMDB-AP). Finalmente, ao virar a aposta de Lula, Dilma naturalmente tornou-se o alvo prioritário da oposição. A exemplo de seu desafeto, José Dirceu, Dilma Rousseff na Casa Civil concentrou muitos poderes e colecionou muitos inimigos. Diante da mesma mistura, pode acabar tendo o mesmo fim de seu sucessor.